Breve resenha sobre a literatura da Guiné-Bissau
Introdução
Dentre as antigas colônias portuguesas, a Guiné-Bissau é o país onde mais tardiamente a literatura se desenvolveu devido ao atraso do aparecimento de condições socio-culturais propícias ao surgimento de vocações literárias. Esse atraso deveu-se sobretudo ao fato da Guiné ser uma colônia de exploração e não de povoamento, tendo estado por um longo período sob a tutela do governo geral da colônia de Cabo Verde.
Os primeiros escritos no território guineense foram produzidos por escritores estabelecidos ou que viveram muitos anos na Guiné, muitos deles de origem cabo-verdiana. A maior parte das suas obras têm um caráter histórico, com a excepção da de Fausto Duarte (1903-1955), que se destacou como romancista, Juvenal Cabral e Fernando Pais Figueiredo, ambos ensaístas, Maria Archer, poetisa do exotismo, Fernanda de Castro, cuja obra dá conta das transformações sociais da colônia na época e João Augusto Silva, que recebeu o primeiro prêmio de literatura colonial. Porém a maior parte destes autores caracterizam-se por uma abordagem paternalista e/ou próxima do discurso colonial.
Durante este período apenas uma figura guineense se destaca : o Cônego Marcelino Marques de Barros que deixou trabalhos no domínio da etnografia, nomeadamente “A literatura dos negros” e uma colaboração com caráter literário dispersa em obras diversas. A ele se deve a recolha e a tradução de contos e canções guineenses em diferentes publicações e numa obra editada em Lisboa em 1900, intitulada “Contos, Canções e Parábolas”.
Fase II - O período entre 1945 e 1970: Uma poesia de combate
É neste período que surgem os primeiros poetas guineenses: Vasco Cabral e Antônio Baticã Ferreira. Amilcar Cabral, com uma dupla ligação à Guiné e Cabo Verde, faz também parte desta geração de escritores nacionalistas. A literatura deste período caracteriza-se pelo surgimento da poesia de combate que denuncia a dominação, a miséria e o sofrimento, incitando à luta de libertação.
Embora os primeiros poemas de Amilcar Cabral revelem um autor cabo-verdiano, a maior parte da sua obra literária é dominada por um cunho universalista, marcada pela contestação e incitação à luta:
"Ah meu grito de revolta que percorreu o mundo
que não transpôs o mundo
o Mundo que sou eu!
Ah ! meu grito de revolta que feneceu lá longe
Muito longe
Na minha garganta!
Na garganta mundo de todos os Homens"
Vasco Cabral é certamente o escritor desta geração com a maior produção poética e o poeta guineense que maior número de temas abordou. A sua pluma passa do oprimido à luta, da miséria à esperança, do amor à paz e à criança.... Inicialmente com uma abordagem universalista, a sua obra se orienta, a partir dos anos 1960 para a realidade guineense. Em 1981, publicou o seu primeiro livro de poemas intitulado “A luta é a minha primavera”, obra que reúne 23 anos de criação poética entre 1951 e 1974. Esta obra foi ulteriormente publicada pela União Latina numa versão trilingue português, francês e romeno.
Citação:
"Mãe África
Vexada
Pisada
calcada até às lágrimas
confia e luta
e um dia a África será nossa..."
Fase III - Dos anos 1970 até o fim dos anos 1980: Uma literatura exclusivamente poética: da poesia de combate à poesia intimista
Com a independência do país, surge uma vaga de jovens poetas, cujas obras impregnadas de um espírito revolucionário, manifestam um caráter social. Os autores mais representativos são: Agnelo Regalla, Antônio Soares Lopes (Tony Tcheca), José Carlos Schwartz, Helder Proença, Francisco Conduto de Pina, Félix Sigá.
O colonialismo, a escravatura e a repressão são denunciados por esses autores que, no pós-independência imediato apelam para a construção da Nação e invocam a liberdade e a esperança num futuro melhor. O tema da identidade é abordado através de diferentes situações: a humilhação do colonizado, a alienação ou assimilação e a necessidade de afirmação da identidade nacional.
Note-se porém que a questão de identidade não é apresentada como um fator de oposição entre o indivíduo e a sociedade na qual este evolui. Ela é analisada como um conflito pessoal do indivíduo, que consciente do seu defasamento cultural em relação à sociedade de origem, procura identificar-se com as suas raízes, da qual foi afastado pela assimilação colonial.
Embora o recurso ao crioulo seja marginal, os autores afirmam-se como cidadãos africanos.
Vejamos:
Agnelo Regalla (tema do assimilado)
"Fui levado
a conhecer a nona sinfonia
Beethoven e Mozart
na música
Dante, Petrarca e Bocácio
na literatura
...Mas de ti mãe África?
Que conheço eu de ti?
a não ser o que me impingiram
o tribalismo, o subdesenvolvimento
e a fome e a miséria como complementos...
Helder Proença (temas de reconstrução e esperança)
"É assim que vamos tecendo as nossas manhãs
de ferro e terra batida
são as cores da nossa vida
onde a juventude se forja
- ardente e gloriosa no peito palpitante do futuro -..."
As primeiras publicações poéticas surgem em 1977 com a edição da primeira antologia "Mantenhas para quem luta", editada pelo Conselho Nacional da Cultura. No ano seguinte, é publicada a “Antologia dos novos poetas / primeiros momentos da construção”. Estas duas obras consagram uma poesia que instiga à reconstrução do jovem país.
Ainda em 1978, Francisco Conduto de Pina publicou o seu primeiro livro de poemas “Garandessa di nô tchon” e Pascoal D’Artagnan Aurigema editou "Djarama”.
Helder Proença publicou em 1982 o livro "Não posso adiar a palavra", com duas obras poéticas.
Em 1990, surgiu uma nova colectânea poética, a “Antologia Poética da Guiné-Bissau” editada em Lisboa pela Editorial Inquérito, reunindo obras de quinze poetas, dos quais a maioria produz ainda uma poesia característica desta época.
Fase IV - A partir da década de 1990: Uma poesia mais intimista
O desencantamento dos sonhos do pós-independência imediato fez com que a euforia revolucionária desse lugar a uma poesia que se tornou mais pessoal, mais intimista, com a deslocaçao dos temas Povo-Nação para o Indivíduo. Outros temas passaram a inspirar a criação literária, tais como o amor. Como autores dessa fase, podem ser citados: Helder Proença, Tony Tcheca, Félix Sigá, Carlos Vieira, Odete Semedo.
"Quisera
nesta vida
... afagar teus cabelos
sugar o doce dos teus olhos
transportar em arco-íris
néctar da tua boca
e juntos caminharmos
ante a ânsia e o sonho..."
"A vida
nasce de gotas de Amor
- a morte
acontece no tempo
entre mim e a vida
paira um vácuo
- com sorriso
aguardo o destino"
Embora o português continue a ser a língua dominante na poesia guineense, o recurso ao crioulo tornou-se mais frequente, quer pela escrita em crioulo, quer pela utilização de termos e expressões crioulas em textos em português. Empregando o crioulo, os autores põem em evidência a riqueza metafórica dessa língua, profundamente enraizada na cultura popular.
Odete Semedo, que utiliza tanto o português como o crioulo, reivindica pertencer a duas culturas:
"Em que língua escrever
as declarações de amor?
em que língua contar as histórias que ouvi contar?
... Falarei em crioulo?
Falarei em crioulo!
mas que sinais deixar aos netos deste século?
ou terei que falar nesta língua lusa
e eu sem arte nem musa
mas assim terei palavras para deixar..."
Várias são as publicações que dão conta destas inovações na literatura bissau-guineense: "O Eco do Pranto" de Tony Tcheca em 1992, uma antologia temática sobre a criança, editada pela Editorial Inquérito em Lisboa; "O silêncio das gaivotas" em 1996, o segundo livro de poemas de Francisco Conduto de Pina; "Kebur-Barkafon di poesia na kriol", uma coletânea de poemas em crioulo, editada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) em 1996; "Entre o Ser e o Amar", uma coletânea bilíngue português-crioulo de poemas de Odete Semedo, publicada também pelo INEP em 1996; "Noites de insónia em terra adormecida", um outro livro de poemas de Tony Tcheka publicado também em 1996 e "Um Cabaz de Amores - Une corbeille d’amours", coletânea bilíngue português-francês de poemas de Carlos Edmilson Vieira, publiacada em 1998 pelas Editions Nouvelles du Sud em Paris.
As primeiras bandas desenhadas de Fernando Júlio, exclusivamente em crioulo, apareceram na década de oitenta. Trata-se essencialmente de sátiras sociais que tiveram um grande sucesso. A música, onde a poesia crioula tem quase a exclusividade, foi também marcada pela exultação da reconstrução nacional.
Finalmente a prosa
Foi apenas em 1993 que a prosa aparece na literatura contemporânea bissau-guineense. Foi Domingas Sami que inaugurou este estilo com a coletânea de contos "A escola", sobre a condição feminina na sociedade nacional.
Em 1994, surge o primeiro romance de Abdulai Silá, "Eterna Paixão", que publicou outros dois romances: "A última tragédia", traduzido para francês e "Mistida" em 1997. Na sua obra Silá põe em destaque a coabitação na sociedade colonial das duas comunidades presentes, a colonizadora e a colonizada. A transição para uma sociedade pós-colonial onde uma nova elite saída da luta de libertação se instala no poder, fazendo contrastar o seu discurso revolucionário com uma prática desastrosa no governo do país, é visitada pela pluma atenta do escritor. O seu romance “Mistida” publicado um ano antes do início da guerra civil de 1998/1999 é considerada pelos críticos literários como uma obra profética.
Em 1997, Carlos Lopes, autor de numerosas obras de caracter histórico, sociológico e político, inaugura a sua incursão na literatura nacional com a publicação de “Corte Geral”, uma recolha de crônicas, na qual, com muito humor, descreve situações reveladoras do surrealismo que caracteriza a sociedade guineense de todos os tempos.
Um outro escritor se impõe em 1998 na cena literária: Filinto Barros, com o seu primeiro romance “Kikia Matcho", que mergulha o leitor no mundo mágico e místico africano, abordando a vida decadente da capital nos anos 1990 e o sonho falhado que representa a emigração.
Em 1999, Filomena Embaló publicou também o seu primeiro romance, “Tiara”, que levanta o véu do delicado tema da integração familiar e social no seio da própria sociedade africana.
Carlos Edmilson Vieira, em 2000, editou "Contos de N’Nori", uma recolha de contos que evocam lendas e costumes populares, recordações de brincadeiras da juventude e as vicissitudes sociais e políticas da sociedade guineense.
Constata-se que a literatura contemporânea bissau-guineense, nas suas diversas formas, tem uma constante : pela pluma dos seus escritores, ela retrata as desilusões, os medos e as aspirações da população perante a situação política, social e económica que prevalece no país.
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Este post reproduz o texto da Professora Filomena Embaló, que abordou a literatura guineense até os anos 2000, não citando obras e autores da fase contemporânea.
Abordaremos esse tema em outro post.
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